As Garotas do Eniac
Como uma estudante de desenvolvimento de sistemas, em uma classe
de 36 alunos onde só 11 são meninas e levando em consideração que, segundo os
professores, esse número era menor nos últimos anos, é inegável a predominância
masculina no setor da informática. Muito se fala de Turing, pouco de Ada
Lovelace e Grace Hopper. Mas hoje, estamos caminhando pra mudança, não é difícil
ver campanhas de incentivo para garotas no mundo da matemática, apesar de ser
uma jornada difícil, estamos cada vez mais presentes no mercado. Então, no post
de hoje vamos falar das pioneiras da programação, as mulheres que engatinharam
para que nós pudéssemos correr: As Garotas do ENIAC.
No final da Segunda Guerra Mundial, o exército dos Estados Unidos
tinha uma missão insólita longe dos campos de batalha: calcular a trajetória de
mísseis desde o momento em que saíam dos canhões até atingirem seus alvos. E no
auge da guerra, com um poder de fogo cada vez maior, esses cálculos eram cada
vez mais necessários.
Por
isso, o exército começou a recrutar pessoas formadas em matemática de todo o
país para realizar as complexas equações diferenciais que traçavam a rota dos
mísseis. E com a maioria dos homens lutando ou trabalhando em outras funções de
guerra, essas pessoas eram todas mulheres. Seu título oficial era computer,
“computadora”.
Em
alguns meses, havia uma centena de computadoras preenchendo tabelas balísticas
manualmente, resolvendo folhas e mais folhas de equações contando apenas com a
ajuda de calculadoras de mesa. Só tinha um problema: cada cálculo levava 30 horas.
Logo, ficou claro que contratar mais matemáticas não seria
suficiente para suprir toda a demanda de cálculos que a guerra estava
produzindo. Foi então que o exército resolveu bancar um experimento altamente
arriscado: uma máquina que pudesse realizar as equações em uma fração do tempo
que as computadoras levavam. Assim nascia o Electronic Numerical Integrator and
Computer, mais conhecido por sua sigla, ENIAC.
O
projeto foi liderado pelos engenheiros John Presper Eckert e John W. Mauchly,
secretamente. Na primavera de 1945, pouco tempo antes do ENIAC ficar pronto,
seis computadoras foram escolhidas para o que era considerado um trabalho
inferior comparado ao que Eckert e Mauchly haviam criado: descobrir como a
máquina funcionava e como ela deveria ser programada para executar os cálculos
balísticos. As matemáticas selecionadas foram Frances Bilas, Jean Jennings, Ruth Lichterman, Kathleen McNulty, Betty Snyder e Marlyn Wescoff.
O ENIAC era um gigante
de 18.000 válvulas e um emaranhado de cabos e interruptores que ocupava um
andar inteiro da Universidade da Pensilvânia. Tudo que as seis mulheres
receberam para descobrir como programá-lo foram os diagramas lógicos dos 40
painéis que compunham o computador.
O problema era: elas
eram, de certa forma, as pioneiras no ramo da programação. Não havia livros,
sistema operacional, linguagem de programação ou vídeos no Youtube as ensinando
a programar aquele monstro. Programar o primeiro computador da história
significava escrever toda a lógica no papel, reproduzi-la fisicamente com
extrema precisão plugando e desplugando cabos e alternando interruptores e
documentá-la nos mínimos detalhes para que pudesse ser reutilizada no futuro.
Configurar um único programa levava várias semanas e muitas horas de dor de
cabeça.
Depois de algum tempo, as programadoras se familiarizaram com o ENIAC. Como
o “cérebro gigante” era basicamente uma calculadora muito grande, elas
perceberam que a melhor forma de usá-lo para determinar a trajetória dos
mísseis era fracionar os cálculos para que pudessem ser executados um de cada
vez. Cada módulo calculava sua parte da equação, passava esse resultado parcial
para o próximo módulo e assim por diante até o resultado final ser impresso.
E como todo programador, as mulheres do ENIAC também corrigiam bugs. E
por corrigir bug, em uma máquina que ocupava 270 m², entenda literalmente
entrar de cabeça em um mar de cabos e interruptores para encontrar qual das
18.000 válvulas queimou ou qual das milhões de soldas estava com algum problema.
Era algo tão comum que elas desenvolveram métodos para descobrir rapidamente
qual componente estava danificado.
Depois de alguns meses, o trabalho foi recompensado: os cálculos
balísticos que levavam 30 horas passaram a ser resolvidos em 15 segundos pelo
ENIAC.
Deixadas de lado
Um dia, Jean Jennings e Betty Snyder foram chamadas por Herman
Goldstine, responsável pela comunicação entre o exército e o time do ENIAC. O
projeto seria lançado oficialmente em duas semanas em uma cerimônia luxuosa e
ele queria saber se as mulheres eram capazes de programar um cálculo balístico
a tempo de ser demonstrado ao vivo no lançamento. Elas aceitaram o desafio e
começaram a trabalhar dia e noite na tarefa.
Na véspera do lançamento, em pleno dia dos namorados, ainda havia um
detalhe que as duas não conseguiam resolver: o ENIAC estava calculando a
trajetória do projétil indefinidamente, ou seja, continuava a projeção mesmo
depois que o projétil já havia atingido o chão. Era um bug embaraçoso que
arruinaria a festa de lançamento — um míssil que continua sua trajetória dentro
da terra era uma imagem tragicômica que colocaria em cheque a capacidade do
ENIAC.
À meia-noite, elas desistiram e pegaram o último trem para suas casas,
mas Betty não conseguiu dormir. Repassando mentalmente a trama de cabos e
interruptores, descobriu onde estava o problema. No dia seguinte, tomou o
primeiro trem, ajustou o cabo defeituoso e rodou o programa. O computador
calculou a trajetória perfeitamente e o ENIAC estava pronto para ser apresentado
ao mundo.
Além de cientistas, Eckert e Mauchly eram ótimos vendedores. Eles
sabiam que uma calculadora gigante executando uma equação diferencial durante
alguns poucos segundos não era exatamente empolgante, então cortaram bolinhas
de pingue-pongue, as numeraram e as colocaram sobre as válvulas. Com a luzes
apagadas, as bolinhas se iluminariam quando as válvulas fossem ligadas e os
jornalistas poderiam literalmente acompanhar o cálculo enquanto ele acontecia.
O cálculo perfeito, a apresentação digna de filmes de ficção
científica e o discurso futurista dos engenheiros garantiram o sucesso da festa
de lançamento. Mauchly chegou a dizer à imprensa que, no futuro, máquinas como
o ENIAC baixariam o preço do pão. Os jornalistas ficaram radiantes com a novidade,
o ENIAC virou uma lenda e Eckert e Mauchly gravaram seus nomes permanentemente
na história da computação.
Nenhuma das seis programadoras do ENIAC foi convidada para a
festa.
Depois da guerra
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, as mulheres que estavam ocupando
postos de trabalho normalmente destinados aos homens foram aconselhadas a
voltar a suas casas e deixar as vagas abertas aos homens que estavam voltando
da guerra. As programadoras do ENIAC jamais ouviram essa sugestão, pois eram
formadas em uma época em que a maioria dos homens sequer ia à faculdade e o
exército sabia que eram fundamentais para levar o projeto além dos cálculos
balísticos.
Segundo Kathleen McNulty, “Nós éramos como pilotos de caça. Quero
dizer, aqui está essa grande, grande máquina, mas você não pode pegar qualquer
piloto de avião, colocá-lo em um caça e dizer “vai lá, cara”. Não podia ser
desse jeito. “
O ENIAC funcionou durante 10 anos e Frances, Jean, Ruth, Kathleen,
Betty e Marlyn tornaram-se as primeiras programadoras profissionais, as
primeiras professoras da programação moderna e as inventoras de ferramentas que
abriram caminho para o software como conhecemos hoje.
Frances
Bilas (depois Spence, 1922–2013) continuou programando equações
com o ENIAC após a guerra e colaborou com os principais matemáticos do mundo.
Jean
Jennings (depois Bartik, 1924–2011) trabalhou no time que transformou
o ENIAC em uma máquina de programa armazenado, tornando mais rápido e fácil
programar problemas mais complexos. Participou também dos projetos dos dois
primeiros computadores comerciais, programando o BINAC e criando a lógica e um
sistema de backup de memória eletrostática para o UNIVAC I. Mais tarde, criou
relatórios para ajudar negócios a entenderem o potencial dos microcomputadores.
Ruth
Lichterman (depois Teitelbaum, 1924–1986) foi realocada juntamente com
o ENIAC para Aberdeen, Maryland, para ser a professora da próxima geração de
programadores do projeto.
Kathleen
McNulty (depois Mauchly Antonelli, 1921–2006) foi quem teve a ideia
de criar subrotinas para conseguir calcular trajetórias que extrapolavam os
limites computacionais do ENIAC. Essas subrotinas foram as precursoras das
funções e tinham a nobre intenção de reaproveitar partes do programa que se
repetiam. Se você pensou em DRY,
acertou na mosca.
Frances
Elizabeth “Betty”
Snyder (depois Holberton, 1917–2001) trabalhou com Jean no
UNIVAC I desenhando seu console de controle, teclado e teclado numérico. Também
foi para esse projeto que ela escreveu o primeiro algoritmo de ordenação em
1952. Betty ainda escreveu padrões para o FORTRAN e participou de vários
comitês nacionais e internacionais de computação como o que foi responsável
pela criação do COBOL.
Marlyn
Wescoff (depois Meltzer, 1922–2008) se desligou do projeto para se
casar em 1947, antes do ENIAC ser deslocado para Aberdeen.
Reconhecimento
As
mulheres daquela foto famosa não são modelos. Elas são dois dos nomes mais
importantes da história da computação e se chamam Jean Jennings e Ruth Lichterman.
Quando Kathy Kleiman descobriu isso e foi atrás delas, as programadoras do
ENIAC ficaram surpresas de serem reconhecidas.
Perto do aniversário de 50 anos do lançamento do ENIAC, em 1996,
Kathy ligou para a Women in Technology International perguntando o que eles
fariam para honrar as seis programadoras e o que ela ouviu foi mais uma triste
ironia na história daquelas mulheres. A WITI, criada justamente para promover o
valor das mulheres na indústria da tecnologia, não fazia a menor ideia de quem
Kathy estava falando.
Na festa oficial do 50º aniversário, apenas duas programadoras do
ENIAC foram reconhecidas. Assim como no lançamento, as outras três mulheres que
ainda estavam vivas não foram sequer convidadas.
Ao saber disso, Kathy decidiu gravar suas histórias e lutar por
seu reconhecimento público. Graças a ela, as seis programadoras do ENIAC foram
induzidas ao hall da fama da WITI durante a conferência Women in Technology de
1997. Nos anos seguintes, elas também receberam prêmios da IEEE Computer
Society e do Computing History Museum.
Kathy
criou o ENIAC
Programmers Project e suas gravações resultaram
no documentário The
Computers, lançado em 2014 com as entrevistas e filmagens originais
que mostram como o ENIAC era operado. Apesar do ressentimento óbvio, as
programadoras mantinham um bom humor surpreendente para quem só teve seu
trabalho reconhecido 50 anos depois.
Hoje
em dia, conhecer essa história é obrigatório a qualquer garota ingressando no
mercado e as mulheres que mudaram as história da computação (e do mundo, diga-se
de passagem), permanecem pra sempre as ‘Garotas do Eniac’ na história.
Por:
Ana Beatriz F. Alves
Ana Luiza Aparecida
publicado dia 29 de Agosto de 2021
fontes:
https://lfbittencourt.com/mulheres-programadoras-eniac-b68503ef05f6/
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